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Cadastre-se como clienteProfessora universitária há mais de três décadas. Mestre em Filosofia. Mestre em Direito. Doutora em Direito. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
Presidente da ABRADE-RJ - Associação Brasileira de Direito Educacional. Consultora do IPAE - Instituto de Pesquisas e Administração Escolar.
Autora de 29 obras jurídicas e articulista dos sites JURID, Lex-Magister, Portal Investidura, COAD, Revista JURES, entre outras renomadas publicações na área juridica.
Resumo:
A extrema modernidade da obra machadiana que foi reconhecida por mais diversos críticos, deve-se ao fato de ter empregado em toda sua obra, o procedimento irônico, herdado da ironia romântica e de sua crítica aos românticos europeus, para estruturar de forma inovadora desde a ironia de Sócrates[1] até a obra de Voltaire[2] sua narrativa e crítica. A ironia que destilou as desigualdades sociais e econômicas e, assistiu como plateia exigente todo cenário histórico do país.
Palavras-chave. Ironia. Humor. Machado de Assis. História. Escravidão. República. Positivismo.
Analisando os contos como “O enfermeiro” e “Um homem célebre” de Machado de Assis passamos a enfatizar a presença da ironia e do humor na composição dos contos, ou seja, como bom observador da sociedade onde estava inserido.
Cumpre realizar uma breve biografia do autor, r Joaquim Maria Machado de Assis, o qual nasceu em julho na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1839, seu pai era pintor de cor escura e sua mãe era portuguesa da Ilha de São Miguel.
Sua infância foi humilde e triste, pois aos dez anos perdeu sua mãe. Aos quinze anos sabia falar a língua francesa e em 06 de janeiro de 1855 já publicava seu primeiro poema, “A Palmeira” no jornal Marmota Fluminense, lugar onde ele trabalhava. Em 1861, publicou sua primeira peça, Queda que as Mulheres Têm pelos Tolos. Machado casou-se aos trinta anos com
Carolina Augusta de Novais, que era uma moça de família de intelectuais e que faleceu em 1904, eles não tiveram filhos.
Ficou mais conhecido, em seu primeiro romance em 1870, Ressurreição, tendo sido a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas a que valeu a consagração em 1881. Integrou o movimento literário realismo e, essa obra significou o marco inicial. Restam presentes as essenciais características da estética realista como o condicionamento do homem ao meio social, a lei do mais forte, a crítica à burguesia, que são apresentados de modo singular e imparcial.
Machado de Assis se destacou por apresentar em sua obra a personalidade do ser humano por meio de seus personagens com fortes características psicológicas em seus contos.
Destaca-se a diferença havida em personagens masculinas e femininas, sublinhando mediocridades, pouca inteligência, objetivos bem supérfluos, enquanto as femininas eram dissimuladas, egoístas, vaidosas, fúteis e, alimentavam a sedução como veneno. No fundo identificou que as pessoas que vivem perante a sociedade valem pelo que têm e, não pelo que são...
O Romantismo, em nosso país, começou a declinar na metade do século XIX. Houve várias mudanças significativas no cenário brasileiro porque o país começa a ser influenciado por outras culturas, ideias e novos interesses políticos[3] e econômicos, os quais antes não eram admitidos.
Neste sentido, a liberdade de comercializar com outros países fez com que a atividade referente às trocas comerciais crescessem consideravelmente, o que acarretou o surgimento de um novo grupo que influenciou no crescimento econômico do país, o mercantilismo que era algo do segundo plano durante a fase do colonialismo passou a ser novidade durante esse período.
Contextualmente, a segunda metade do século XIX assinalou fortes mudanças no cenário da pátria. A liberdade de comércio exterior proporcionava considerável impulso à atividade de trocas, gerando a um grupo as condições que possibilitavam um notável crescimento.
Importante sublinhar que o Brasil, durante o período colonial não havia muita liberdade ns trocas de produtos e com o surgimento desse novo gruo as possibilidades de comercializar para países externos ficaram facilitadas e isso acarretou sensível crescimento econômico, diversificação nas atividades culturais e forneceu bom material para os escritos de Machado de Assis.
No mesmo período, deu-se a abolição do tráfico negreiro, o que repercutiu na lavoura de café e, ainda possibilitando o surgimento de novas áreas de povoamento, produção e de consumo, sob os influxos oriundos das trocas com países estrangeiros.
E, em face desses fatores, novas técnicas surgiram para desenvolver economicamente o país, técnicas de transporte dirigidas à ferrovia, de comunicações abrangendo o telégrafo, os portos passaram a ser modernizados e dinamizados, a imprensa galgou maior credibilidade pois os jornais ganharam notoriedade e respeito, houve maior interesse pelas diversões urbanas, especialmente, o teatro e, a rua passou a ser espaço relevante para a vida em sociedade, e assim, a sociedade ganhava nova liberdade política e econômica.
A literatura brasileira sofreu mudanças seja quanto aos temas, como tradições que foram modificadas, isto é, os romances tratariam sobre matérias voltadas para o casamento, a construção da família, o crescimento das cidades, e também de novas atividades culturais.
Com o declínio do romantismo, a literatura não poderia ficar imune às alterações tão cruciais e, conforme se acentuaram, entrou em decadência o romantismo. O que inexoravelmente se relaciona à ascensão da classe média.
Surgiu o realismo brasileiro[4] e a questão abolicionista tornou-se a partir de 1850 um motivo para o declínio da economia açucareira, permitindo surgiu nova sociedade com novas ideias. Temas abolicionistas e republicanos tomaram o período de 1870 a 1890, esse novo burguês e as novas classes médias[5].
O período será propício às teses da inteligência nacional, cada vez mais influenciada elo pensamento europeu, que constelava em torno da filosofia positivista e do evolucionismo. E, durante tal período, os escritores brasileiros foram influenciados muito pela cultura europeia e tinham como caráter marcante os ideais positivistas e evolucionistas.
O realismo impactou profundamente a narração de como a sociedade pátria se comportava no século XIX e seus problemas e paradoxos, sobretudo, quando se buscava modernizar o Brasil.
Os personagens tinham como objetivo sondar-lhes o modo de agir perante a sociedade e impunha o dever de descobrir-lhe a verdade, nos sentido positivista e, assim, dissecar seu comportamento.
O foco será realizar um diagnóstico a respeito de suas personagens e, incluiu a mudança de comportamento e assim, a influência do meio social.
Todos esses fatores impôs ao romantismo fortes mudanças e, o realismo se baseou em fatos da sociedade. Mesmo que em termos ficcionais, enriqueceu a estrutura própria e analítica, E o autor Machado de Assis torna-se um dos maiores escritores do Realismo brasileiro por essa capacidade analítica.
É nesta capacidade que se encontra todo o equilíbrio da prosa realista e da ficção que dá característica às suas obras. Conforme afirma Bosi: “O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na ficção de Machado de Assis”.
Nos contos machadianos, tende-se a levar o leitor a participar progressivamente da narrativa e, assim, Machado de Assis é considerado por muitos escritores e estudiosos da literatura brasileira, dentre estes, José Veríssimo, como relevantíssimo
escritor e precursor na língua portuguesa. E, fez notáveis declarações ao talento de Machado de Assis, em sua obra História da literatura brasileira publicada em 1916.
José Veríssimo tinha grande admiração pelo autor Machado de Assis, por este apresentar uma escrita diferente dos demais escritores, pois a mesma conta com características psicológicas, que faz com que sua escrita seja a mais natural possível, ou seja, apresenta traços típicos de um autor que sabe descrever muito bem aquilo que estava vivendo a sociedade brasileira daquela época, mesmo que de forma positiva ou negativa.
Os contos machadianos apresentam temas típicos da vida humana, os quais descrevem desde histórias de amor até os sentimentos mais eloquentes, mesmo que de maneira sutil e elegante. Mediante a esses fatores, ressalta-se que José Veríssimo tentou resgatar a “brasilidade” poética para Machado.
Há computados centro e setenta e oito contos publicados, totalizando três mil e setecentas e cinquenta laudas, mas apenas, uma pequena parte do trabalho de Machado de Assis.
Nos romances do Bruxo[6] do Cosme Velho deu-se notoriedade à temática morte e, destaca-se três obras de sua autoria, a saber: Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Foram o total de nove romances partilhados em três fases machadianas.
Ao longo da narrativa, faz uma análise minuciosa dos seus personagens usando elementos irônicos e humorísticos como características marcantes em seus contos. Isso faz com que o autor crie narradores oniscientes, ou seja, que conhecem o psicológico de cada personagem de suas narrativas e narram o que de fato está acontecendo em sua volta.
Ao resenhar a obra “Ironia e Humor” de Lélia P. Duarte busca sistematizar e descrever o que são essas duas noções, a ironia e o humor.
Segundo ele, a ironia é: “a figura de retórica em que se diz o contrário do que se diz, o que implica o reconhecimento da potencialidade de mentira implícita na linguagem”. Assim, a ironia, de um lado, é um recurso de estilo e, de outro, é a própria explicitação de que a verdade aparente das coisas é apenas aparente; a ironia revela, escondendo, portanto, ela é central dentro de obras literárias que trabalham com a realidade do mundo, que vive de aparências e convenções. Sem dúvida, é central para entender uma obra como a de Machado de Assis e a crítica que faz à sociedade do século XIX[7].
O termo “humor” originou-se na Antiguidade como uma noção para indicar uma função reguladora para o bem-estar físico e emocional do ser.
Segundo Pessanha: “A palavra humor surgiu na medicina humoral dos antigos gregos. Naqueles tempos, o termo humor representava qualquer um dos quatro fluidos corporais (ou humores) que se considerava serem responsáveis por regular a saúde física e emocional” (2011).
O humor, ainda de acordo com Barreto, corresponde a uma forma de pensar e refletir sobre os sentimentos mais intensos e corrosivos presentes na alma das pessoas, e isso implica de fato no “querer e no poder” de superar todos os impasses que afetam a Psiquê humana. Segundo ele, “O humor é uma proposta de reflexão sobre a angústia e a impotência do ser humano. Uma volta por cima desses embaraços” (BARRETO, 2007).
Dessa maneira, na tentativa de compreender a realidade de uma sociedade corrompida, em especial a do Rio de Janeiro do século XIX, Machado, no interior do movimento realista, busca retratar o mundo por um viés irônico e humorístico.
Esse humor irônico é uma temática marcante na maioria dos contos machadianos, porque é por meio desse tipo de construção estilística que Machado tende a levar o leitor a construir interpretações contrárias, com características satíricas, às que esperava inicialmente e que resultam em várias leituras.
De forma singular, “o humor irônico” serve como pano de fundo para criticar a sociedade da qual fazia parte, e também para destacar as camadas mais íntimas do ser de maneira extremamente sutil.
Por essas e outras qualidades, Machado tornou-se um dos mais importantes escritores do nosso país, senão o mais renomado escritor até os dias atuais. já escreveram sobre o humor e a ironia nas obras do autor. Exporemos algumas dessas críticas e reflexões já elaboradas sobre o tema.
Assim, em Lúcia Miguel-Pereira, o humor machadiano ao longo das narrativas apresenta-se de forma pessimista e peculiar, o que confere ao autor uma diferença se comparado aos demais escritores acerca dos julgamentos sobre a verdadeira face do ser humano, ou seja, Machado vê com um olhar pacificado o indivíduo, pois, para ele, o ser humano tende a sofrer mudanças comportamentais ao passo que este sofre influências do meio ao qual pertence.
Machado é um pessimista por natureza, mas não possui traços de um escritor que julgue os atos do indivíduo, ou seja, descreve o ser como ele é, e de acordo com sua posição social.
A ironia machadiana surge como um pano de fundo para descrever a forma como viviam a sociedade escravocrata e a classe dominante da época, ou boa parte dessa. Desta forma, as suas personagens formam uma verdadeira teia de homens e mulheres sem escrúpulos, ligados somente à aparência e a avareza.
As personagens machadianas são caracterizadas por não obedecer aos padrões da sociedade, no entanto, apresentam traços marcantes da burguesia, não são voltados ao exercício da religião, prezam muito o que têm, são pouco amáveis e, normalmente, são levadas a acentuar o amor de forma errônea por meio do adultério.
Outras perspectivas podem ser vistas a partir do estudo de Andrea Czarnobay Perrot que analisou a obra de Machado dentro da historiografia da literatura brasileira.
Assim, a estudiosa começou a elencar críticos consagrados que teriam lido Machado também por meio da compreensão do fenômeno da ironia e do humor.
Ela afirma que o crítico José Veríssimo se referia a Machado de Assis como um escritor que trouxe consigo uma natureza humorística incomparável com os demais escritores da época, ainda que ele, nos três primeiros romances ainda estivesse ligado, de certa forma, à escola romântica.
No entanto, já nessas obras, é perceptível também a junção de elementos irônicos ao longo das narrativas, como as personagens aparecerem de maneira irreverente e incomum e demonstrarem pouco os sentimentos se comparados ao estilo europeu, romantizado, o qual marcou profundamente a literatura nacional.
Conforme Veríssimo apud Perrot (2008): Havia, entretanto, no primeiro romance de Machado de Assis e ainda mais talvez nos que mais de perto o seguiram, A mão e a luva (1874), Helena (1876), visíveis ressaibos de romantismo.
Temperava-os, porém já, diluindo-os num sabor mais pessoal e menos de escola, a sua nativa ironia e a sua desabusada visão das cousas, que o forravam ao romanesco, à sentimentalidade amaneirada que tanto viciou e desluziu a nossa ficção (Veríssimo apud Perrot, 2008).
De acordo com a autora, vários estudiosos da literatura nacional e estrangeira passaram a seguir a mesma linha de pesquisa adotada por José Veríssimo, a respeito da filiação literária de Machado de Assis, tais como: Nélson Werneck Sodré (1938), Lúcia Miguel Pereira (1950), Afrânio Coutinho(1969), Antonio Candido (1975), Ernst Behler (1997), Irlemar Chiampi (1991), entre outros.
O desta mesma linha de pesquisa e de acordo com a autora, os críticos literários como Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Ernest Behler e Irlemar Chiampi também consideram a utilização da ironia como fator preponderante em todos os trabalhos produzidos por Machado de Assis.
Uma “técnica” que funciona como um “jogo literário” que Machado se apropriou desde o romantismo para levar o leitor a fazer várias interpretações acerca do verdadeiro sentido de suas narrativas.
Machado de Assis, fazendo uso peculiar e característico da ironia, pode ter construído sua obra a partir de uma estratégia surgida no movimento romântico - a ironia “romântica” (de caráter literário) -, através da qual antecipou procedimentos da literatura moderna (PERROT, 2008).
Assim, seja pela história ou pelas críticas literárias, Machado foi sendo lido como um autor irônico e cheio de humor. Captar essas características em cada texto, em cada obra é que tem fascinado os leitores até hoje.
O conto exige imediata preocupação com o impacto que causa no leitor, por isso o escritor busca “o máximo de efeito” com “o mínimo de recursos”, segundo definição do conto por Gotlib (1995), em Teoria do Conto.
Assim afirma Pereira (2000) [...]: “foi incontestavelmente como contista que Machado de Assis fez as suas obras-primas”. Nesta perspectiva, sem dúvida Machado se destacou mais como contista, porque foi nesse gênero literário que mostrou todo o seu talento sob medida.
O conto “Um Homem Célebre" de Machado de Assis narra a vida do personagem Pestana, um músico pianista compositor de polca, polca é um estilo musical popular, mas Pestana está sempre com o desejo de criar músicas mais renomadas, como as clássicas, buscando inspiração em compositores como Mozart e Beethoven.
Pestana se angustia por não conseguir compor outras músicas, além de polcas. Residindo com um senhor negro que era uma espécie de criado, Pestana tinha muitos quadros, sendo um do padre que o educou e o ensinou música e latim.
Para muitos, o tal padre era o pai de Pestana, o qual, ao morrer, deixou a casa de herança para Pestana, os demais quadros eram de compositores de música clássica. Tais retratos eram tidos como santos e o piano considerado o altar desse personagem.
Era costume de Pestana olhar as estrelas à noite e contemplar os quadros. Pestana idolatrava os compositores clássicos, querendo ser como eles. É importante dizer que foi somente por meio de suas composições no ritmo de polcas que Pestana tornou-se célebre, no entanto, não demorava muito para que ele se desgostasse. Como pode ser percebido claramente no seguinte trecho: [...] Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado.
Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil... – As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada ao deitar-se (ASSIS, 2004).
Dado o exposto, o leitor pode verificar a frustração do personagem ao passo que se constata a existência do humor. Já que Pestana possui uma grande aflição em não conseguir fazer aquilo que ele desejava e sonhava realizar.
É importante dizer que Pestana se apaixonou por uma mulher, logo após ouvi-la cantar. Casou-se com a ela, acreditando que, com seu casamento e com a inspiração que viria da mulher, ele iria compor músicas clássicas. Chegou mesmo a compor uma peça clássica, um “noturno”, o qual mostrou à sua mulher: [...] chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem quem era.
De repente, parando, interrogou-a com os olhos. – Acaba, disse Maria; não é Chopin? Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin (ASSIS, 2004). Ou seja, ele não conseguia compor música clássica, mesmo depois de casado. No mais, veio à doença da mulher e, com a sua morte, Pestana decide compor um Réquiem, porém este nunca é feito.
Cansado dessas tentativas vãs, ele fica sem compor mesmo as polcas que lhe davam sucesso e dinheiro. Em vista disso, pode-se observar uma compreensão dos acontecimentos e razões que levaram a cometer tais ações, como se casar, compor polcas e ao final se ver sem “nada”, como, falta de amigos e bens, a própria morte de Pestana pode ser considerado como algo humorístico.
Por conta disso, triste e desiludido com a impossibilidade de chegar à fama por meio da música erudita, após uma febre, acaba por morrer, como um célebre compositor de polcas. A situação original do conto é em si mesma humorística.
O sujeito que é famoso, mas é infeliz; o sujeito que busca a imortalidade por meio da música clássica enquanto vai se frustrando com os pequenos dissabores da vida.
O ideal que nunca chega a ser real. Há também uma possível ironia, lida nas entrelinhas, que o filho “bastardo” de um padre pudesse ser incapaz de produzir algo tão “puro” como a música clássica e ficasse restrito às músicas populares, “vulgares”, “profanas”.
A ironia do destino também parece se projetar sobre a personagem, como antes acontecera com Procópio em “O Enfermeiro”. O humor irônico se expressa sob várias formas: o desalento com o sucesso que fazia nas festas com suas polcas, o casamento com Maria para ter “inspiração”, as tentativas fracassadas, como a cena em que esquece que compôs uma música de “memória”, a tentativa final de compor um Réquiem.
Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria (ASSIS, 2004). A grande ironia de onde nasce o humor da história é que o personagem Pestana possua um grande dom em compor polca, é um insatisfeito, sem humor nenhum. [...]
Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa[...] – Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais. Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. (ASSIS, 2004).
O humor irônico também aparece no motivo do casamento de Pestana. Casado com uma mulher tão amável, cantora, poderia ter uma vida feliz, mas se insatisfaz com a falta de inspiração. E a morte dela se afigura como mais uma oportunidade de inspiração do que como um sofrimento profundo.
É preciso levar em consideração alguns aspectos deste conto, o primeiro é que o personagem Pestana pode ser visto como um “espelho” de muitos indivíduos que possuem condições reais para se realizarem totalmente, contudo são pessoas frustradas, quando decidem fazer algo que está distante de sua realidade ou capacidade.
O segundo seria que o conto retrata que a vida humana é comparada a uma certa debilidade, ou seja, o indivíduo perde tempo buscando realizar-se ou procurando ser perfeito em uma situação que não lhe é nada favorável; nesse sentido, deixa de usufruir a oportunidade que a vida lhe proporciona.
O destino é irônico porque os seres humanos colocam-se em situação ideal à qual não podem ou não correspondem. A ironia é revelação das contradições humanas que, nas palavras de Machado de Assis, torna-se corrosiva e humorística visão da realidade e da sociedade.
Através dos contos de Machado de Assis, “O enfermeiro” e “Um homem célebre”, as noções referentes à ironia e ao humor presentes de forma explícita nas narrativas.
É válido ressaltar que os elementos supracitados são de características peculiares deste grande escritor, o qual se consagrou por apresentar uma escrita diferente dos demais escritores de sua época, nos presenteando com a sua literatura.
Ele possui, de forma fictícia, uma gama de elementos que proporcionam ao leitor uma compreensão do mundo e das relações humanas. No mais, a sua escrita não apresenta em si uma única forma, pois ela possui uma abrangência muito vasta de técnicas, de possibilidades de interpretação.
A análise dos contos de Machado de Assis nos traz uma reflexão acerca do homem de acordo com “a sua verdadeira natureza”, bem como os fatores que levam o indivíduo a não se sentir satisfeito em seu meio. No mais, o grande talento do autor fez com que se tornasse consagrado ao retratar de forma fictícia a realidade da sociedade do Rio de Janeiro, da qual fez parte.
Machado foi um escritor a frente do seu tempo, pois os temas que foram abordados em suas obras são tidos como “modelos” de uma sociedade atual, na qual boa parte vive de aparências e sendo levado pelas circunstâncias.
Destaco algumas pérolas de Machado de Assis que demonstram o quanto podemos aprender com a leitura de seus textos, a saber:
1) Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito.
2) Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares em que sou brindado.
3) Está morto: podemos elogiá-lo à vontade.
4) Não levante a espada sobre a cabeça de quem te pediu perdão.
5) As melhores mulheres pertencem aos homens mais atrevidos.
6) O tempo é um químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais.
7) A arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal.
8) Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies.
9) Lágrimas não são argumentos.
10) Não se ama duas vezes a mesma mulher.
11) A mentira é muita vez tão involuntária como a respiração.
12) Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar…
13) O amor é o egoísmo duplicado.
14) O coração é a região do inesperado.
15) A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente.
16) A vida é uma enorme loteria; os prémios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra.
Apesar da própria gramática da Língua Portuguesa ensinar o que seja “ironia”, como recurso estilístico (“consiste em utilizar um termo em sentido oposto ou usual, obtendo-se, com isso, efeito crítico e humorístico”), Machado colocava um ingrediente no caldeirão que ainda não se descobriu.
No romance “Helena”, capítulo 6, o mestre escreveu: “A primeira das duas mulas que [o preto] conduzia, olhava filosoficamente para ele”. Nota-se o traço irônico no uso inusitado do advérbio “filosoficamente” para descrever o olhar do animal. Sem falar que é frequente na obra machadiana a aproximação entre burros e filósofos.
No primeiro livro de Machado, “Ressurreição”, assim escreveu com irreverência já no primeiro capítulo: “Vieira era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposições (...). Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino”.
Humor e descrição caricata de personagem teriam espaço garantido nas narrações do mestre. Com tom de comicidade, Machado escreveu sobre traição em “Memória póstumas de Brás Cubas”: “– Você janta conosco, doutor, disse-me Lobo Neves. – Veio para isso mesmo, confirmou a mulher; diz que você possui o melhor vinho do Rio de Janeiro”. Ironia machadiana pura.
Com efeito, Lobo Neves possuía o melhor vinho para Brás Cubas: sua mulher Virgília, que os dois (o marido e o amante) bebiam na mesma taça.
Em seu penúltimo romance, o incrível “Esaú e Jacó”, de 1904, nos faz rir com o texto: “Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Caponi! Andando [na rua da Quitanda], o pé esquerdo saía-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade”.
O tal “buraquinho” tem valor cômico e irônico. O “buraquinho” na meia da ex-bailarina é um símbolo de decadência, em contraste com o passado de glórias. É a nostalgia do apogeu, descrita com humor pelo Conselheiro Aires, que a conheceu em melhores dias. Machado se valia desse caminho estilístico.
Em tempo, não é à toa que a palavra “ironia” etimologicamente significa “dissimulação”. Grande Machado, fingidor mágico das palavras.
A ironia machadiana é considerada pelo crítico como o “algo mais” que distinguia a literatura de Machado de Assis da literatura romântica brasileira do mesmo período[8].
Concordamos novamente com o autor– embora, hoje, devido ao instrumental teórico mais apropriado que possuímos há tempos estabelecido na crítica literária –, a não ser por um aspecto: a ironia de que cogita Veríssimo também é parte do movimento romântico, também é um procedimento estruturante surgido e implementado pelo romantismo – no sentido europeu do termo, vale ressaltar.
Tal constatação leva-nos a considerar que mesmo a fase dita mais aperfeiçoada de Machado de Assis, realista, emprega um dos principais procedimentos que compuseram a “cartilha” do movimento literário-filosófico chamado Romantismo, a saber, a ironia literária
Na obra-prima “Dom Casmurro”, o personagem Bentinho usa um eufemismo irônico para dizer que todos os seus velhos amigos estão mortos, ou seja, estão debaixo da terra, estudando a geologia dos cemitérios, assim: “Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”.
Dou “mil vivas!” ao maior de todos os escritores porque seu humor sofisticado me faz viajar por mundos sempre com um sorriso ensolarado.
A “ironia romântica” aparece especificamente, em literatura, como um procedimento através do qual o autor explicita todos os jogos possíveis para dissimular sua intenção verdadeira e para romper a atmosfera de ilusão presente em toda obra de arte. A ironia romântica pode, assim, ser interpretada como um princípio literário estruturante e específico, baseado no jogo entre os sentidos possíveis.
Na literatura europeia, a presença da ironia indicava, com muita clareza e certeza, que uma obra pertencia ao movimento romântico. No Brasil, tal presença, na obra machadiana, nunca indicou sua filiação à escola romântica, muito antes pelo contrário.
Aqui, negou-se sempre que Machado pudesse ter escrito obras com qualidade no período inicial, identificado coma escola romântica; suas melhores obras, as que o alçaram à condição de maior nome de nossas letras, sempre foram aquelas referentes ao período maduro, filiado à escola realista.
Logo, a modernidade da obra machadiana, reconhecida por críticos os mais diversos, deve-se, para nós, ao fato de Machado de Assis ter empregado, em toda a extensão de sua obra, o procedimento irônico, herdado da ironia romântica estabelecida como parte da literatura e de sua crítica pelos românticos europeus, para estruturar e estilizar sua obra de maneira tão inovadora e original em nossa literatura. A grande “virada” que representa a literatura amadurecida de Machado no panorama da literatura brasileira.
Entre as abordagens contemporâneas da ironia, encontramos autores que se dedicaram a sua análise, tomando-a como estruturador princípio de textos literários e não-literários, como é o caso de Linda Hutchcon, há os que enfoquem o uso linguístico da ironia, como é o caso de Catherine Jerbrat e Jacqueline Autier-Revuz.
Filosoficamente[9], a ironia é movimento de consciência, como provocação ou uma atitude que flerta com o perigo. A ironia que se confunde com o conhecimento, sendo filha do prazer. A ironia é mais moral por ser verdadeira e, também, mais cruel por ser verdadeiramente cômica.
A ironia machadiana surge como um pano de fundo para descrever a forma como viviam a sociedade escravocrata e a classe dominante da época, ou boa parte dessa. Desta forma, as suas personagens formam uma verdadeira teia de homens e mulheres sem escrúpulos, ligados somente à aparência e a avareza.
Parafraseando Anatole France, in litteris: "A ironia é a última fase da desilusão".
Referências.
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[1] A ironia socrática era, antes de tudo, o método de perguntar sobre uma coisa em discussão, de delimitar um conceito e, contradizendo-o, refutá-lo. O verbo que originou a palavra (eirein) significa mesmo perguntar. A primeira parte do método socrático conhecida como ironia, vem da expressão grega que significa "perguntar, fingindo não saber". Esse primeiro momento do diálogo socrático possui um caráter negativo, pois nega as pré-concepções, os pré-julgamentos e os pré-conceitos (preconceitos). A ironia era composta de perguntas feitas ao interlocutor com o objetivo de deixar claro que o conhecimento que ele julgava possuir, não passava de mera opinião ou uma interpretação parcial da realidade. Para Sócrates, o não conhecimento ou a ignorância é preferível ao mau conhecimento (conhecimento baseado em preconceitos). Com isso, as perguntas de Sócrates voltavam-se para que o interlocutor percebesse que não está seguro de suas crenças e reconhecesse a própria ignorância.
[2] O uso do recurso retórico ironia por Voltaire em seu grande romance Cândido ou o Otimismo à luz do teórico Muecke e da estudiosa Alavarce, da fonte André Maurois que contextualiza a obra e do exemplo do diálogo irônico platônico presente na obra Eutidemo de Platão para o auxílio na revelação da completude do fenômeno, permitindo o contextualizar, o apresentar, o resumir, o delimitar e o analisar criticamente do fenômeno em suas formas mais populares e nas formas que interessam à análise literária que são a ironia verbal e a ironia situacional nos temas propostos pelo que o romance estudado aborda que são a filosofia, o cristianismo e outros temas mais gerais trazidos por Voltaire, que auxiliam na compreensão do fenômeno estudado, que teve muitos conceitos acrescidos em si ao longo dos anos, de modo que ficou difícil defini-lo sucintamente, o que justifica e gera a necessidade deste trabalho elaborar um plano para o estudo do recurso retórico ironia, tão importante e tão usado em narrativas e diálogos complexos.
[3] Tornou-se consensual que Machado de Assis não se apaixona pela política. Inegavelmente nunca a ignorou como cronista ou romancista. Por isso mesmo, participou também da acesa discussão sobre a transferência da capital do país. As crônicas publicadas na Gazeta de Notícias sob o título de A Semana, por exemplo, referem-se aos anos que vão de 1892 até 1897. Em época de recente instauração da República e Abolição da Escravatura, Machado denuncia a farsa do novo regime, que continuaria com a oligarquia no poder, e também aponta, embora não sem reconhecer o valor da lei assinada, a discriminação que os negros continuariam a sofrer no âmbito social.
[4] O Realismo no Brasil teve início no ano de 1881, quando Machado de Assis (1839-1908), que, até então, era um escritor romântico, publicou a obra realista Memórias póstumas de Brás Cubas. Dessa forma, o autor mostrava o seu desencanto com a estética romântica e o conservadorismo que ela representava. Os romances e os contos de Machado de Assis são obras de leitura imprescindível para melhor entender a literatura e a cultura brasileira do século XIX. Especialmente, o período do Segundo Reinado, a corte do Rio de Janeiro, as relações de favor, e esquema patriarcal da sociedade brasileira, e as condições políticas e econômicas do império. Suas transformações culturais e estéticas, na fase em que o Brasil começa a adquirir características próprias de uma nação.
[5] “O humor irônico” é uma temática marcante na maioria dos contos machadianos, porque é por meio desse tipo de construção estilística que Machado tende a levar o leitor a construir interpretações contrárias, com características satíricas, às que esperava inicialmente e que resultam em várias leituras.
O século XIX no Brasil fora marcado pela lenta transição da ordem patriarcal para os costumes burgueses. Tornava-se necessário, também, a adoção dos costumes europeus e os ares de intelectualidade. Dinheiro, propriedades, quantidade de escravos, catolicismo ou brancura da pele ainda eram fundamentais, porém, não suficientes para a entrada ou a manutenção no círculo restrito das novas classes dominantes.
[6] A parte do bruxo é um pouco mais curiosa e até mesmo divertida: dizem que certa vez, quando morava no Cosme Velho, Machado queimou algumas cartas em um caldeirão no sobrado onde vivia. A vizinhança viu o ato e passou a chamá-lo de bruxo a partir daquele dia. O apelido, entretanto, só pegou quando o poeta Carlos Drummond de Andrade fez o poema A um bruxo, com amor, que reverencia o escritor.
[7] O século XIX, mais especificamente o seu segundo quartel, no Brasil, foi um momento muito significativo para a nossa literatura, pois esse período representou a propagação e a “popularização” do romance brasileiro cuja proposta era bem delineada: a de divertir e instruir os leitores. E graças a essa intenção, nossos escritores conseguiram, de certa maneira, estabelecer, consolidar e projetar a literatura brasileira além dos limites de nossos espaços fronteiriços. A sociedade burguesa brasileira do século XIX constituiu, por assim dizer, um campo fértil e um suporte bastante interessante para que nossos poetas e romancistas procedessem à análise de seu contexto e o desenhassem a seus leitores. Ao retratar os usos e costumes dessa sociedade, suas tradições, sua formação e sua cultura, nossos escritores produziram verdadeiros clássicos que, até hoje, continuam extremamente atuais.
[8] Na obra A Pirâmide e o trapézio, Faoro mostrou que Machado de Assis expõe a vida em si mesma, revelando a sociedade brasileira e a vida política de sua época, e tinha como objeto o estudo do Brasil, perpassando por ideologias, vícios e virtudes.
[9] O registro machadiano de sutilezas e disfarces contribuiu, de forma inconteste, para que nós, seus leitores, conhecêssemos e reconhecêssemos a grandeza de sua obra como também o desenho de suas personagens femininas. Ao apresentá-las, Machado de Assis utiliza-se de uma estratégia narrativa que expõe a figura feminina a partir de um outro ângulo, o da esfera do público, espaço este frequentado somente por homens naquela época.
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